segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Na pele do outro

O cotidiano parece se repetir conforme o previsto até que você é empalado por uma cena. Eu saía da loja de um shopping de São Paulo, na tarde de sábado, quando ele passou por mim. Não sei se era a forma como o ar se deslocava de outro jeito ao redor dele, mas eu ainda não o tinha visto e minhas mãos já se estendiam no ar para ampará-lo. Ou talvez fosse só impressão minha, uma vontade estancada antes do movimento. Era um homem velho. Mas mais do que velho, era um homem doente. Cada um dos seus passos se dava por uma coragem tão grande, porque até o pé aterrissar no chão me parecia que ele podia retroceder ou cair. Mas ele avançava. E porque ele avançava na minha frente eu pude ver aquilo que outras partes de mim já haviam percebido antes. Sobre a sua cabeça havia uma peruca tão falsa que servia apenas para revelar aquilo que ele pretendia esconder. E de uma cor tão diferente do seu cabelo branco que parecia descuido de quem o amava ou não amava. Aquilo doía porque havia uma vaidade nele, a preocupação de ocultar a nudez da cabeça. E a peruca mal feita a expunha como um fracasso. A cada um de seus passos de epopeia sua camisa subia revelando um largo pedaço da fralda geriátrica. E assim ele avançava como uma denúncia claudicante da fragilidade de todos nós. Atravessando o corredor do shopping, lugar onde fingimos poder comprar tudo o que nos falta, consumidos pelo medo dessa vida que já começa nos garantindo apenas o fim.

Eu o seguia nesse balé sem coreografia quando ouvi os risinhos. Olhei ao redor e vi as pessoas se cutucando. Olha lá. Olha lá que engraçado. Ele tinha virado piada. Aquele homem desconhecido deixara a sua casa e atravessava o shopping. Para isso empreendera seus melhores esforços. Tinha vestido a peruca para que não percebessem sua calvície. Tinha colocado a fralda para não se urinar no meio do corredor. E caminhava podendo cair a cada passo. E as pessoas ao seu redor riam. E por um momento temi uma cena de filme, quando de repente todos começam a gargalhar e há apenas o homem em silêncio. O homem que não compreende. Até enxergar seu reflexo no olhar que o outro lhe devolve e ser aniquilado porque tudo o que veem nele não é um homem tentando viver, mas uma chance de garantir sua superioridade e sua diferença.

Quando entrevisto algum escritor costumo perguntar: por que você escreve? Alguns me respondem que escrevem para não matar. Eu também escrevo para não matar. Acho que na maior parte das vezes a gente escreve, pinta, cozinha, compõe, costura, cria, enfim, porque não sabe o que fazer com as pessoas que riem enquanto alguém tenta atravessar o corredor do shopping sem ter forças para atravessar o corredor do shopping.

O que me horroriza, mais do que os grandes massacres estampados no noticiário, são essas pequenas maldades do cotidiano. E só consigo compreender os grandes massacres a partir dos pequenos massacres de todo dia. Os risinhos e dedos que apontam, os cotovelos que se cutucam.

Quem pratica os massacres miúdos do dia a dia é gente que se acha do bem, que não cometeu nenhum delito, que vai trabalhar de manhã e dá presente de Natal. Gente com quem você pode conversar sobre o tempo enquanto espera o ônibus, que trabalha ao seu lado ou bem perto de você, e às vezes até lhe empresta o creme dental no banheiro. É destes que eu tenho mais medo, é com estes que eu não sei lidar.


O pequeno mal está por toda parte. Possivelmente sempre esteve. Apenas que cada época tem suas peculiaridades. E na nossa somos cegados o tempo inteiro por imagens que nos chegam por telas de todos os tamanhos. E cada vez mais escolhemos as cenas que veremos, com quais nosso cérebro decidirá se comover. E as dividimos com os amigos no twitter, enviamos por email e parece até que há uma competição sobre quem consegue enviar mais rápido as imagens mais impactantes. Mas não sei se isso é ver. Não sei se isso nos coloca em contato de verdade.Entrevistei muitos assassinos sem sobressalto, porque estava tudo ali, explícito. Era uma quebra. O que me parece mais difícil é lidar com o mal rotineiro e persistente, difícil de combater porque camuflado. O mal praticado com afinco pelos pequenos assassinos do cotidiano que nenhuma lei enquadra. E quando você os confronta, esboçam uma cara de espanto.

Penso nisso porque acho que o mundo seria melhor – e a vida doeria um pouco menos – se cada um se esforçasse para vestir a pele do outro antes de rir, apontar e cutucar o colega para que não perca a chance de desprezar um outro, em geral mais vulnerável. Antes de julgar e de condenar. Antes de se achar melhor, mais esperto e mais inteligente. Vestir a pele do outro no minuto anterior ao salto na jugular.

Para mim é imediato me colocar na pele do homem que atravessa o corredor sem saber se vai chegar até o fim sem tombar. Mas é mais difícil me enfiar na pele das pessoas que riem, porque sinto raiva. E tenho a pretensão de não ter nada a ver com gente assim. Incorro então no mesmo erro, ao me pretender tão diferente daquele que me horroriza. É certo então que também eu cometi e cometo meus pecados de soberba. Por coerência – e eu valorizo a coerência - preciso me forçar. E eu me forço porque acredito nesse ato.

Quais são as razões delas, então? Por que ao testemunhar o homem que atravessa o shopping em passos trôpegos elas riem, se cutucam e apontam? Fiquei pensando se estas pessoas estão tão cegas pela avalanche de cenas em tempo real que para elas é apenas uma imagem da qual podem se descolar. É só mais uma cena que, como tantas a que assistimos todos os dias, não sabemos mais se é realidade ou ficção. Não é que não sabemos, apenas que parece que não importa, agora que os limites estão distendidos. Por que apenas assistimos às cenas – não as vemos nem entramos em contato.

E é esta a grande diferença num mundo de tanta visibilidade e tão pouco contato real. E o real aqui não é uma oposição entre o real e o virtual, mas o real real. Eu vejo você, eu toco em você, eu sinto a sua dor e me sujo com o seu sangue, ainda que seja pelo computador. É um jeito de estar no mundo e se relacionar com o outro disposto a se deixar tocar e a assumir os riscos de se deixar tocar. Me parece que estamos cada vez menos dispostos a isso – apesar de termos uma possibilidade grandiosa de acesso ao outro por conta da internet. Será que é isso? Dezenas de amigos no facebook e nenhum contato real, no sentido de se deixar transtornar e transformar pelo outro, para além das amenidades e da persistente troca de informações?

Será que era por isso que podiam rir? Por que não tinham nenhuma conexão com aquele outro ser humano? É curioso que agora o verbo conectar é mais usado para nos ligarmos a uma máquina que nos leva instantaneamente para a vida dos outros. Pela primeira vez somos capazes de nos conectar ao mundo inteiro. O que é mais fácil do que se conectar a uma só pessoa - ao homem doente que atravessa o corredor do shopping diante de nós. É curioso como agora podemos nos conectar – para nos desconectarmos.

E se, ao contrário, riam porque se sentiam tão conectadas a ele que precisavam rir para suportar? Pensei então que talvez pudesse ser esta a razão. Aquelas pessoas realmente enxergavam aquele homem – e por enxergar é que precisavam rir, se cutucar e apontar. Porque a fragilidade dele também é a delas, a de cada um de nós.

Nada nos garante que em algum momento da vida não estaremos nós também tentando atravessar o corredor do shopping por onde hoje caminhamos sem sentir. Nada nos assegura de que um dia não seremos nós a quase cair a cada passo. Se tivermos sorte e não morrermos de bala perdida ou de chuva, como afirmar que não usaremos fralda geriátrica ou tentaremos cobrir nossa calvície ou as marcas de uma quimioterapia com uma peruca que apenas denuncia aquilo que queríamos esconder?

Talvez seja esta a razão, pensei. Essas pessoas precisaram rir, cutucar e apontar para ter a certeza – momentânea e ilusória – de que ele não era elas. Não seria nunca. Só apontamos para o outro, para o diferente, para aquele que não somos nós. E quando apontamos para alguém é justamente para denunciar que ela não é como nós.

Neste caso, teria sido para se certificar. Elas diziam: Olha que peruca ridícula. Ou: Você viu que ele está de fralda? Mas na verdade estavam dizendo: O que acontece com ele nunca acontecerá comigo. Ou: Ele não tem nada a ver comigo. Por que deixam gente assim entrar num shopping?

Riam, cutucavam e apontavam por medo do que viam nele – de si mesmas.

São hipóteses, apenas. Uma tentativa de entender – de pensar e escrever em vez de responder com violência à violência que presenciei. E que me aniquila tanto quanto um massacre reconhecido no noticiário como massacre.

Talvez não seja nada disso. No Natal minha filha me deu de presente uma camiseta em que a Mafalda, a personagem do cartunista argentino Quino, dizia: “E não é que neste mundo tem cada vez mais gente e cada vez menos pessoas?”. Talvez ali, no corredor do shopping, não fossem pessoas – só gente. Porque nascemos gente – mas só nos tornamos pessoas se fizermos o movimento.


[Eliane Brum - Revista Época]

quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

O Bicho

Bom, pra início de conversa, eu ainda não estudei pra coisa nenhuma. Disse que 'amanhã' eu estudaria, mas esse amanhã já virou depois de amanhã e pelo o que eu tô vendo, vai demorar virar realidade.

Hoje acordei revoltada. É, revoltadíssima! Acordei com a sensação de ter sido esquecida no mundo. Aquela vontade devastadora e apertada de chorar quis perturbar o meu dia, mas felizmente eu fui mais forte que a tal vontade. O motivo pela minha chateação não se define e nesse caso é irrelevante, uma vez que o meu propósito nessa postagem vai muito além disso [chega de tanto individualismo, isso aqui tá parecendo mais um diário do que um blog].
Já havia postado sobre o filme 'Tropa de Elite 2', aliás, postagem ridícula, uma vez que a minha intenção era criticar, dialogar com o filme e infelizmente aquilo lá ficou mais pra resenha. Hoje tive a oportunidade de assisti-lo mais uma vez. E só assim meu dia começou...

Assisti ao Tropa, dessa vez acompanhada da ilustríssima presença dos meus pais. Tive um olhar diferente e muito mais criterioso em relação ao filme. Meu pai, um homem de poucas palavras, não demonstrou muita empolgação, mas no fundo eu sei que ele se surpreendeu. Minha mãe, foi impedida inúmeras vezes de assistir certas cenas do filme, por julgá-las fortes demais para a sua sensibilidade, mas gostou e ficou se questionando.

Poucas horas atrás tive a felicíssima oportunidade de assistir a outro filme. O nome do filme? Última parada 174. Chocante, surpreendente [as pessoas que lêem meu blog devem estar se perguntando porque eu não mudo o nome 'Controvérsias' para 'Surpreendente', já que essa é uma palavra que eu utilizo pelo o menos umas 10 vezes em cada postagem]. Mas insisto em dizer que o filme é mesmo muito surpreendente. Baseado em fatos reais, mostra a realidade nua e crua de um garoto abandonado pelas circunstanciais, sem perspectiva, sem futuro. Aliás, com um grande futuro... Rotulado por qualquer pessoa que o visse jogado nas ruas do Rio de Janeiro. Negro, pobre, mal vestido? Bandido é claro!

Não vou enfatizar a sinopse do filme nem abordar nada que esteja relacionado à história em que o filme foi baseado. Quero dizer que cada dia mais eu respiro a vontade de mudar essa realidade brusca e nojenta que vivemos. Já que a realidade das ruas e favelas está distante de mim, os filmes são meu instrumento de chegada até essa imundice que existe no nosso país.

E assim, eu termino essa postagem com uma poesia, que tem muita importância na minha vida por ter sido a primeira de tantas que eu já decorei pra declamar. Sou grata a minha mãe que me apresentou à linguagem do Manuel Bandeira, e que talvez tenha contribuído com a minha sede de mudança.

O Bicho

Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.

Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.

O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.

O bicho, meu Deus, era um homem.

[Manuel Bandeira]


terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Que os mestres me ajudem

aaah férias! Quanto mais o tempo passa, mais devagar ele fica. Sei que vou me arrepender de ter dito isso, mas queria tanto voltar à 'vida real', movimentada, surpreendente. Tenho tanto tempo que nem sei o que fazer com ele. Ando me sentindo tão fútil, tão vazia.. Meus pais têm razão quando olham pra mim e exclamam decepcionados: 'Aaah Ynaê, como eu queria te ver estudando!'.
Me acostumei a ouvir isso e é isso que os decepciona - me acostumei e agora não ligo pra mais nada!
Tenho vontade de acordar às 07:30 da manhã, pegar um livro qualquer e devorá-lo. Tenho vontade de trocar o computador por um bom livro. Tenho vontade de trocar a madrugada acordada por uma boa noite de sono depois do cansaço visual deixado pela leitura de um livro. Mas é aí que mora meu problema: Vontade eu até tenho, mas me falta força de vontade!

Amanhã pretendo começar a estudar Direito Civil... Prometi fazer isso nas férias e ainda não cumpri com a minha palavra. Enfim, boa sorte pra mim!
Que o Ilustríssimo Venoza, minha cara Maria Helena Diniz e o adorável Carlos Alberto Gonçalves me ajudem!

droga, postagem fútil e inútil!


segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

Vaquejada


O último fim de semana foi muito surpreendente. Debaixo de muitos pingos de chuva que não cessavam em cair, eu e minha familia viajamos por norte do Estado para passar a virada do ano num lugar diferente. E era chuva, muita chuva! Não tinha distinção. Cidades maiores, currutelinhas insignficantes, a chuva caía na mesma medida, ritmo e intensidade.

A viagem era relativamente longa, 500 km pra percorrer e a chuva tornava um problema, uma vez que as estradas estavam sofrendo com a quatidade de água empoçada, o carro tinha que diminuir a velocidade.

Lugar lindo, paisagem perfeita.. Quase o paraíso. Visitei a família, conheci pessoas, cuidei de criança, aprendi truques culinários... e surpreendentemente, o que eu nunca imaginava encontrar lá pras bandas daquele lugar, eu acabei encontrando. Na cidade que não era tão grande, os acontecimentos movimentam toda uma população e consequentemente os turistas que ali estão. Era um evento. O acontecimento da pecuária da região. Vaquejada, alguém já ouviu falar? É, o nome é esse mesmo.

Vaquejada é um esporte praticado pelos peões, oriundos do nordeste, onde a intenção é 'laçar' os bois de uma forma alternativa. Uma vez que no Nordeste, a vegetação é pedregosa e muito diverificada, os peões econtram uma certa dificuldade em laçar os bois, para apreendê-los. Por isso, surgiu a vaquejada. Funciona assim: o peão montado em seu cavalo, corre atrás do seu alvo e puxa-o pelo rabo, para que esse esteja mobilizado. E como toda cultura vira moda e até mesmo esporte, nesse caso não foi diferente. A vaquejada foi trazida pra região de Goiás e tornou-se esporte atrativo naquela cidade.

Por lá, encontrei de tudo. Crianças, jovens, homens, mulheres, curiosos.. Cavalos, bois, churrasco, lama e muita chuva! A movimentação foi ganhando espaço. As pessoas se aglomeravam cada vez mais, a partida estava prestes a ser dada. E derepente, um moço montado num cavalo alazão de muita qualidade, desparou atrás de um boi. Este peão foi inclinando seu corpo no cavalo, adquirindo maior velocidade até que suas mãos encontrassem com o rabo do animal que tentava se defender, correndo cada vez mais. O objetivo era derrubar o animal num limite de espaço. Quem assim fizesse ganharia pontos e seria o vencedor.

Nesse ritmo de ano novo, vida nova e recomeço percebi que as coisas mais belas estão naquilo de mais simples que existe. Para os competidores da vaquejada, um começo de ano muito agitado. Para mim, espectadora de um esporte tão inusitado e irreverente pra quem conhecia, um início de ano surpreendente.



Bom, é isso! Um Feliz Ano Novo surpreendente pra todo mundo!